por: Ana Fernandes
data 18 de janeiro de 2002:
 

Ana Fernandes - Vamos começar com o seu percurso profissional.
Sônia Marques - Podemos começar falando de minha formação, na FAUR, a Faculdade de Arquitetura da Universidade do Recife, (que depois virou um curso da Universidade Federal de Pernambuco) onde a formação era exclusivamente para projeto. Mas, independentemente da orientação do curso, na minha turma os que se deram bem, posteriormente, no mercado de projeto, foram aqueles, que, desde o segundo ano da faculdade, começaram a trabalhar na prefeitura, com aprovação de projeto. Curiosamente, porque a meu ver, isto indica que, de fato, a qualificação para atingir o mercado de projeto, para além do aprendizado na faculdade, vinha, no caso, pelo fato destes colegas ocuparem um posto de onde podiam conhecer a rede. Este foi o capital - no sentido de Bourdieu - que eles mobilizaram, para ingressar no mercado de trabalho: ligação com grupos de escritórios, grupos de construção, então esse pessoal foi para a prefeitura e trabalhou com aprovação de projetos e para escritórios locais. Isso aconteceu em 65. Na verdade, eu deveria dizer elas, porque eram sobretudo mulheres que ficaram em escritórios, e cujos escritórios ainda são bons escritórios até hoje. Bons no sentido de terem até hoje trabalho de edificações de dimensão razoável que lhes permite viver como autônomas. Embora, quando examinada a composição interna destes escritórios, observe-se que algumas pessoas dos grupos originais tenham migrado para outras áreas, como ensino e planejamento. De qualquer forma, retomando o que dissemos inicialmente, a orientação do curso e a expectativa das pessoas era fazer projeto de edificação. Então, na virada, justamente no terceiro ano, eu compreendi que não ia dar, porque eu não tinha mobilizado capital suficiente para estar em escritório. A chance que eu tinha tido eu joguei fora. Cheguei no quinto ano sem ter passado por uma prefeitura. Nos grandes escritórios em que eu fui, não gostei... Num dos escritórios onde fui chamada, não passei nem dois dias. Isso, quando você chega no quinto ano, a sua sorte já esta selada. O último escritório que eu fui, e, onde mais uma vez joguei fora a chance, foi o de Armando Holanda. Armando Holanda estava trabalhando com aquela reforma do Morro Guararapes, ligada ao IPHAN. Lá eu trabalhava com um colega meu, hoje professor na Paraíba, Alberto de Souza. Eu estava no quinto ano e me sentia tão pouco à vontade, naquele mundo da prancheta, já estava tão estressada e calejada pelo "rapport" com os professores de projeto, que não acertava a fazer mínimas coisas óbvias que eu sabia fazer e ia para o escritório todo dia doida que terminasse o contrato e que eles não me contratassem de novo. Enfim... aquele mundo de projeto era meio complicado para mim, como socialização, eu não me convencia das coisas, do modo como eram feitas as escolhas.. Foi quando Geraldo Santana - que era meu professor, conversava muito comigo e, nesta época, estava envolvido com a criação da FIDEM - me levou para ver umas palestras de Maria Adélia (de Souza) e acenou com a história de eu sair para Urbanismo. Havia aquela história, na época, de Urbanismo como a arquitetura com preocupação social. Aquela pílula falsa que nos venderam: " Arquiteto de prancheta é não sei quê... Mas o urbanismo tem uma preocupação social, para redimir a humanidade." Então comecei com essa "coisa" de Urbanismo e Geraldo falou: "Olha...vai cuidar de sua vida, que está complicada sua vida profissional. Ou : " vai fazer história da arte..." que era o que ele aconselhava. Ou ainda : "vai embora para Urbanismo". Ai eu fui fazer Sociologia Urbana na França com Raymond Ledrut. Foi quando eu encontrei Lícia Valadares, que estava terminando o Doutorado dela com Raymond Ledrut. Comecei sociologia Urbana mas, não acabei, porque nessa época minha mãe adoeceu e morreu de câncer e eu voltei para o Brasil. Em compensação entrei para trabalhar no CONDEPE, que era um órgão estadual. Não sei a que corresponde aqui...

Ana Fernandes - A antiga CONDER...
Sônia Marques - Fui então trabalhar no CONDEPE, em habitação. E daí, eu compreendi que não era absolutamente essa a minha praia. Porque foi o pior período profissional da minha vida. Estava naquelas coisas do BNH, que acaba com a COHAB. Então, o tipo de inserção profissional e o meio de planejadores...eu passava mal, eu vi que não era realmente a minha praia.
Lauro Bernardes que era o todo poderoso da FIDEM, a instituição metropolitana teria dito a alguém, segundo chegou aos meus ouvidos no CONDEPE, que me chamaria para FIDEM o organismo metropolitano, que estava sendo formado, co-optando "os melhores quadros" das outras instituições, a partir do próprio CONDEPE, onde a FIDEM inclusive esteve sediada inicialmente. Era um daqueles processos de reestruturação institucional: quando ocorre um esvaziamento, como houve com a SUDENE que ficou "arcaica" os melhores abandonam o barco antes, ou são puxados para outro órgão. Então, quem ia para FIDEM, na época eram considerados os melhores. Você sair do CONDEPE para a FIDEM era considerado um upgrade profissional. Mas eu não queria de jeito nenhum ir para a FIDEM.Mais uma vez foi Geraldo Santana, a quem eu devo muitas coisas, quem me trouxe uma luz, quando disse: você vai fazer concurso. Então eu fiz concurso. Estudei para o concurso, e quando saiu a nomeação eu pedi demissão da CONDEPE. Aí eu resolvi que a Universidade era a minha praia mesmo! Geraldo achou que eu era louca: "Peça vinte horas, você fica lá e vai ter uma renda maior". Eu nem quis saber, e disse que não ficaria nem mais um dia no CONDEPE. Fui também fazer mestrado, para sociologia. Eu já tinha feito vestibular para sociologia, tirado o primeiro lugar, tinha ganhado uma bolsa na Universidade Católica, mas não havia cursado. Mas, depois resolvi fazer e entrei para o mestrado exatamente na mesma época em que entrei como professora do departamento de arquitetura da UFPE. Não quis fazer MDU, Mestrado de Desenvolvimento Urbano, porque no MDU reinava então o mesmo ambiente profissional que eu via no CONDEPE! Era todo mundo com perfil de consultor, de secretário de Planejamento, o curso tinha uma vocação de consultor, eu detesto e detestava o Mestrado de Desenvolvimento Urbano. Este mestrado tinha, então, um ou dois anos, mas, estava muito reconhecido e as teses de MDU eram assim muito associadas às demandas institucionais, ao fornecimento de modelos para a FiDEM ou pesquisas para a SUDENE. Tanto que brincavam dizendo que deveria ser chamado de Mestrado de Desenvolvimento Rural, porque muita das pesquisas junto à SUDENE eram na área rural.
Comprometimento, mercado de desenvolvimento urbano. Na verdade isso funcionava como consultoria... Eu disse: "Não quero, eu quero mesmo é academia, tô fora!". Fui me embora para sociologia. A decisão de sociologia foi, assim, de um lado mesmo por conta da busca de uma maior reflexão, lado que a sociologia parecei oferecer-me melhor e que eu já havia começado a desenvolver em Toulouse...Mas foi também para fugir do MDU. E porque não tinha arquitetura, e, na época, eu não podia sair de Recife. Eu decidi que ia fazer, e minha praia era história da arquitetura, história contemporânea... Eu havia sido monitora da desta disciplina na Unité Pédagogique D'Architecture em Toulouse e quando entrei para ensinar na UFPE, no currículo arquitetura internacional distribui-se numa seqüência de disciplinas, arquitetura brasileira noutras. Como eu passei no mesmo concurso com Geraldo Gomes, ele ficou com brasileira, que era a praia dele. E eu fiquei com a Internacional. Depois disso, basicamente a experiência foi essa... com algumas saídas mais para o meio sociológico, aí volta para arquitetura e ficou um pouco assim... E depois a grande experiência que foi trabalhar com o patrimônio. Realmente, pegar o IPHAN foi para mim um outro corte. Por que mesmo o doutorado que foi uma grande experiência, na École des Hautes Études em Sciences Sociales (Paris) não resultou de uma grande decisão. Eu terminei chegando na École, porque a decisão primeira, em função da qual nós nos conhecemos, era para o IEFDES. Porque o MDU começou com aquela história de movimentos sociais e de discutir o Estado. Naquela época em que entender de Urbanismo era falar do ponto de vista da economia... E foi nessa época que Pierre (Salama) veio ao MDU e eu fui traduzir o curso dele. Eu havia lido Marx, conhecia aquele tipo de raciocínio, li os livros de Pierre antes dele chegar para dar o curso e quando ele chegou a gente fez uma amizade muito grande. E eu falei: "você me orienta?". E ele: "É claro!" E mais uma vez eu entrei no "bonde" de pensar o planejamento de estado e quando eu cheguei lá no IEDES vi que não era nada disso. Foi por isso que uma vez lá, eu terminei voltando para sociologia e indo para a École. Não foi a primeira escolha não. Foi só quando vi que geografia e planejamento urbano realmente só é a minha praia, como objeto de estudo crítico, historiográfico, não com a vocação de planejadora, consultora.

Ana Fernandes - Por quê a experiência com o IPHAN incomodou tanto?
Sônia Marques - Porque foi uma virada profissional definitiva. Eu havia voltado da França, em 90, sem o Doutorado terminado e a minha situação começou a ficar difícil. Depois o doutorado era em sociologia mesmo e, embora este aspecto pareça não ter interesse do ponto de vista do mercado de trabalho, o ponto central parece-me ser o seguinte: essa coisa de sair da área de arquitetura, no que se refere à minha geração, não foi escolha, foi uma coisa meio...não é exílio... Para quem gostou de planejamento, quem tem vocação de consultor ou executivo e saiu da militância política para o poder do estado...acho que o caminho pode até ser sentido como um processo natural. Mas, para quem tinha, como eu, uma tendência mais acadêmica, quando a área de pesquisa e pós-graduação em arquitetura não estava estruturada, o fato de ter saído, porque estava buscando um lugar para estudar, e chegar com "essa coisa" na área de sociologia e inacabada ... parecia que eu havia perdido toda competência profissional. Eu não estava fazendo projeto, não suportava o mercado de projeto, mas havia visto muita arquitetura por onde havia andado, continuava estudando arquitetura, mas não agüentava fazer planejamento urbano. Bom, se eu não gostava na época do macro-planejamento, também não ia gostar do pequeno, desta estória de plano diretor e participação social: "Dona Maria, o que a senhora quer para consertar sua rua?" É muita capacitação para essas besteiras, orçamento participativo... Sobretudo quando o plano local passa por outras situações, que você não está disposto a pagar... Então eu comecei a sentir aquela coisa de que estava em meio a um grande investimento, mas, também na praia dos outros, onde eu era peixe pequeno. Eu consigo conversar na área de sociologia bem, mas no limite de algumas áreas como a Sociologia das Profissões, com algumas pessoas e tal. Porque os meninos de sociologia no segundo ano já são bolsistas, já publicaram três ou quatro livros. Então, eu entrei no campo deles completamente "desclassificada", na acepção de Bourdieu eu senti um déclassement, uma perda do status profissional. Já entre os arquitetos, a sensação era de que, na verdade, apesar de um esforço enorme de qualificação eu não passava de uma "professorazinha".
O IPHAN me deu a possibilidade de superar isto. Porque o IPHAN é uma instituição dos anos 30, atravessada pela memória de Lúcio Costa. Então, eu acho que o IPHAN tem algo muito emblemático. Só os aristocratas da profissão estavam ali inicialmente... Aquela elite que não sabia o preço de um ovo, que nem o Suplicy que volta para casa da mãe quando se divorcia... Eles eram lindíssimos, educadíssimos, umas coisas lindas! Quando eu tentei trabalhar no IPHAN, estudante e recém-formada não houve chance. E o estágio era gratuito! Há uma história clássica, do então presidente do IAB, o Dalvino, que hoje é um grande executivo em Brasília. Ele trabalhou no IPHAN três meses de graça no final dos quais foi cobrar o salário a Dr. Airton (Costa Carvalho) que teria dito algo assim: "Bom, você está trabalhando no IPHAN", como se por si só esta condição fosse uma honra e não um trabalho a ser remunerado. Dalvino retrucou: "Sim, mas eu tenho mulher, conta de luz e de água para pagar..." Esse clima meio aristocrático do IPHAN reina, de certo modo, até hoje! Eu estive lá na segunda-feira passada no lançamento do livro do Glauco (Campello). E eles falam: nós da casa, com um sentido de identidade, de "pertença" para usar esta fatídica palavra da moda! Então eu ser chamada para trabalhar na "casa" era a glória! Evidentemente, que eu só cheguei na casa, porque a casa estava arruinada! O Collor tinha acabado com o IPHAN virado para IBPC. Até hoje não sei como nem porquê Marcos Mendonça o presidente da regional chegou ao meu nome para a diretoria técnica. Éramos de fora, os outsiders, alienígenas... Não sei também como nem porque Glauco (Campello) presidente do IPHAN chamou Marcos Mendonça. Eu acho que eles temiam um pouco os nomes disponíveis sempre associados a grupos locais, não sei. Então, nisso deu a zebra e um belo dia Marcos Mendonça me alcança, eu que estava lá numa situação profissional meio que sem saber o que fazer da vida. E foi assim que cheguei no IPHAN.
Quando eu cheguei no IPHAN, minha tese ainda não estava defendida, eu tinha feito todos os créditos para o Doutorado, estava só escrevendo. No IPHAN eu consegui trazer de volta tudo em que eu havia pensado e trabalhado... desde indagações antigas como o que é ser arquiteto até coisas práticas com as quais eu havia começado a trabalhar quando recém-formada (1973/4) fizera um curso de História da Arte onde conheci muita gente como Dona Lígia, Luís Saia, Silva Telles. Tudo que tinha sido vivido fazia sentido de repente. Em 93, o espírito desta geração ainda pairava no IPHAN, pelo menos na Regional de Recife. Aí tive também contato com muitos arquitetos que estavam desenvolvendo grandes projetos, pois uma área importante de proteção com limitação de gabarito, que é a dos arredores do projeto Guararapes que soma-se um cone com gabarito da aeronáutica, coincide com um dos locais favoritos da especulação imobiliária e as exigências do IPHAN davam sempre margem à abertura de intermináveis processos de negociação. Arquitetos de grande atuação no mercado tinham que pedir o parecer ao IPHAN. Então vinham aqueles caras que eram os "grandões", humildemente, sem a arrogância costumeira em muitos. Isto me mostrou toda uma cozinha da profissão, coisas várias de que eu já suspeitava, mas que comprovei no dia-a-dia profissional. Por exemplo, as estórias do Forte Orange Holandês, onde um ex-presidiário de Itamaracá, que hoje se juntou em promoções com o consulado Holandês - teimava em arrendar o forte Orange, para fazer show de axé e ia pressionar a gente no IPHAN porque ele sabia que os grupos interessados nos shows tinham mais poder que o superintendente do IPHAN. E Marcos Mendonça sabia disso porque ele era um cara muito vivo, mas os filhos de Dr. Rodrigo... só faziam lamentar nostalgicamente o tempo em que se cumpriam as ordens do IPHAN.

Ana Fernandes - O Marcos Mendonça ocupava que posição na época?
Sônia Marques - O Marcos Mendonça era o presidente da Quinta Regional. Mas Marcos é um executivo que veio da Caixa Econômica, de financiamento de BNH. Era pessoa daquele Marcos Freire, de Recife, que foi da Caixa Econômica. Então tem outra visão, diversa da tradicionalmente dominante no IPHAN e estava sabendo com quem estava lidando. O pessoal não, ficava: "Ah! Mas quando nós tínhamos poder, no passado, a testa daquele anjinho barroco não ia cair...". Enquanto eles estavam falando no anjinho barroco, os interesses em jogo pegavam pesado. Aí eu comecei a ver como realmente ali estavam em conflito todas as práticas profissionais de setenta anos.
Todo dia se tinha embate dessas linguagens todas. Desde dos que estavam com um empreendimento: um grande hotel em Boa Viagem... o que é que um cara destes ia fazer? Ele poderia fazer tudo direitinho, se ele tivesse escrúpulos... Mas muitos chegavam rindo cinicamente tipo "Não adianta, se vocês não liberarem eu vou fazer mesmo!!!" Eu acho que em dois anos de IPHAN eu aprendi mais do que em não sei quantos anos anteriores de vida profissional. Tive que olhar projeto também, comecei a olhar muito, viajar muito para ver o patrimônio local, que era uma coisa que tinha faltado na formação. No IPHAN tinha que olhar projeto e obra para aprovar. Então, voltar a olhar projeto desenhado e representação também foi legal! Acho que os dois anos de IPHAN para mim foram bem melhores que o Doutorado. Depois eu sai do IPHAN, porque tinha que sair mesmo, o povo da "casa" pôs a gente para fora! E, antes de eu sair do IPHAN, terminei meu Doutorado...

Ana Fernandes - Tudo isso, você estava na UFPE?
Sônia Marques - Tudo. Eu fui para o IPHAN e mantive na UFPE a mesma carga horária de aula de sempre. Eles só me liberaram das demais obrigações do gênero reunião de departamento e me permitiram assumir o cargo de diretoria, mantendo o vínculo com a universidade. Então eu continuei dando aulas, escrevendo a tese, que acabei e, ainda no IPHAN, pedi um estágio no patrimônio na França. Consegui uma bolsa e fui para o Ministério da Cultura ver como funcionava o patrimônio na França. Juntei uma coisa com a outra, isto é, aproveitei a ajuda da bolsa e a ocasião do estágio para ir também defender minha tese... Foi quando tive a oportunidade de voltar a ensinar no MDU.

Ana Fernandes - E com relação à tese, das coisas que você trabalhou? Os elementos que você considerou essenciais para discutir a questão da profissão.
Sônia Marques - Eu acho que existem muitos artigos, mas a maioria dos trabalhos sobre a profissão são feitos por elementos da profissão que não conseguem ter um distanciamento. Nessa linha de raciocínio, eu acho, que os trabalhos de Duran, sobre a produção do arquiteto, com toda limitações e , apesar de já ter algum tempo e a situação profissional haver mudado muito, ainda é muito melhor do que tudo que foi escrito aqui no Brasil sobre a profissão. O arquiteto não consegue ter distanciamento crítico sobre si mesmo. Como eu acho, por exemplo, que o trabalho escrito por Magali Sarfatti Larson, (eu até dei como sugestão para Marco Aurélio trazer para Salvador agora em Outubro) É uma socióloga, ela escreveu "Behind the Postmodern Facade", livro de noventa e... sei lá. Muito bom! Eu acho ainda o melhor livro americano. O pessoal da Califórnia do Sul, escreveu muita coisa sobre profissão, inclusive citando Larson. Mas como são arquitetos, não fazem uma análise legal, porque está sempre meio comprometido, tem a questão d o juízo de valor, quem é bom arquiteto, as questões de mercado. Enfim, eu acho, que os melhores trabalhos críticos sobre a profissão, não são feitos por arquitetos, porque estes têm sempre uma "tendência corporativista". Impossível escapar dela, não é mesmo? Só os suicidas ou esquizofrênicos! Eu não gosto destes trabalhos. Eu acho que o que me ajudou um pouco nessa coisa da dissertação foi o fato de que a ida para sociologia me Obrigou a um esforço intelectual maior, ainda mais com a escolha de Pécaut, como orientador. Pecaut é exigentíssimo, não é marxista, desconfia das coisas de esquerda, acha que são panfletárias em sua maioria ( noque, na minha opinião, tem razão, pelop menos para aquela época) não é "brasilianista", tem horror a brasilianista. Ele estava com ódio dos brasileiros, porque achava que os brasileiros não eram sérios, eram muito ideólogos. Tanto que ele colocou todos os brasileiros que estava orientando para fora, só ficou comigo até o fim. Então, ele me exigiu que a bibliografia não fosse latino-americana, exigiu que eu lesse em inglês. Foi a primeira pergunta dele: se eu lia inglês. E como exigência que eu trabalhasse com sociologia das profissões. E, eu acho, que foi tudo que eu queria na vida! Por isso sou extremamente grata a ele!

Ana Fernandes - Você, do ponto de vista desse trabalho, quais os elementos essenciais para avaliação e compreensão da profissão do arquiteto e urbanista? O que você acha que são as principais categorias da área que ajudam a entender essa profissão e a evolução dela no tempo?
Sônia Marques - Eu acho que a primeira coisa é a compreensão da questão do que é uma profissão e o que é que é o mercado. Agora, não no sentido econômico estreito, mas, no sentido das variáveis mais amplas do mercado profissional e das possibilidades de ingressar e inserir-se nele com sucesso, como o fato de ter uma herança de um capital ideológico... Então, não é possível ver a questão da inserção, apenas através daquelas estatísticas que vem do IAB ou do Sindicato. Eu acho que aquilo pode ser uma oportunidade, uma entrada. Por exemplo, o problema do modernismo e a crise de prestígio que se assistiu em países como a França ou os EUA é completamente diferente no Brasil, onde a presença de Niemeyer... Mas enfim, você tem uma geração que ainda está viva e que ainda controla algumas posições. Aqui a questão ideológica foi outra, associada a quem foi, quem ficou, como a ditadura influiu no mercado. Quem controla ainda algumas coisas num país em que um "Francisconi" - para dar um exemplo emblemático, um dos dois autores da política urbana - volta a ser professor na UNB? Quem são pessoas que têm determinadas influências?

Ana Fernandes - Eu quero mais uma delas...
Sônia Marques - Há também uma questão importante na análise profissional que diz respeito aos próprios modelos de referência para a formação, que são completamente diferentes, num país e noutro. Então, eu acho, que tem umas coisas exemplares aqui... Contou-se muita coisa aqui sobre a influência de Le Corbusier. Mas ele não foi modelo para França... Le Corbusier na França e nada é a mesma coisa! Nenhum estudante de arquitetura, na França, teve Le Corbusier como modelo profissional, como aqui teve Niemeyer. Le Corbusier, na França, tem um outro nível de influência, aliás, muito maior agora, finalmente, do que foi enquanto vivo. Eu acho que Duran está certo nisso, essa coincidência dos processos no Brasil, tanto da adoção da linguagem modernista, quanto da afirmação profissional , juntamente com o reconhecimento internacional, conferiu uma aura e selou um destino: Ser arquiteto no Brasil foi ser moderno. Essa não foi uma compreensão norte-americana, nunca, nem tampouco uma compreensão européia, mesmo quando o modernismo era hegemônico. Essa pode ter sido uma concepção Canadense, por exemplo, depois da expo de Montreal de 1967. Portanto, as especificidades locais são importantes para averiguar a questão do estatuto profissional.

Ana Fernandes - Isso no Brasil enquanto formação é moderno.
Sônia Marques - Essa experiência agora em Natal, tem me enriquecido muito! A turmas para as quais leciono introdução ao trabalho de graduação, por exemplo, saem com umas coisas que me permitem pensar no que hoje é o mercado de serviços profissionais. Muitos trabalhos de graduação, as monografias finais de curso de Natal são projetos reais, encomendados, que vão virar obra construída!. Quer dizer, uma coisa completamente diferente de Recife, onde os estudantes concluintes se chegarem, no ano seguinte a reformar o banheiro de uma tia ou derem um palpite sobre a cerâmica do banheiro da avó já se dão por satisfeitos. Eles pensam o trabalho de graduação portanto numa perspectiva totalmente diferente dos colegas potiguares que vão fazer porque fulano encomendou, e pensam "eu vou fazer, meu projeto vais ser construído". O cara com cinco anos de formado em Recife não tem a menor ilusão de que, evidentemente, a autoridade profissional caiu. Em Natal eles nem se dão conta, há uma extensa clientela, mas pouquíssimo exigente, e o trabalho profissional é baratíssimo. Aí você tem uma concorrência maior em Recife do que em Natal, tem uma concorrência maior aqui em Salvador do que em Recife, e vai aumentando, tem uma concorrência maior em São Paulo, onde também com uma clientela muito mais exigente. Por isto, na minha opinião, -por mais que eu tenha críticas a um lado muito empírico norte-americano,- algumas categorias da sociologia das profissões tais como autoridade profissional, legitimidade, relação entre autoridade X mercado, nível de organização da clientela...pelo menos, para mim, ajudam muito a pensar a questão de serviço de arquitetura. Você só pode pressionar os preços de seu serviço profissional quando você tem uma base cognitiva que é rara. Mas nem tanto, não pode ser tão rara que ninguém se interesse por ela, ou não compreenda. É como se você toca harpa ou fala sânscrito... é tão raro que não tem mercado! Ou, ao contrário, se você de repente você faz um negócio que todo mundo fala e faz.

Ana Fernandes - Quais são os três que você falou? Autoridade, Legitimidade e...
Sônia Marques - E a relação com a clientela, que é uma relação quantitativa, como em geral salientam os economistas, mas também qualitativa. Ou seja, não é só a questão da quantidade, do tamanho, da dimensão da clientela, da oferta e da demanda. Mas, também o quanto essa clientela é exigente ou não. Você tem uma clientela para tais ou quais serviços, dependendo se ela é uma clientela organizada ou não, se é ou não é exigente, você tem tipos de mercado.
Se você tem uma clientela que é altamente organizada e exigente, você tem outro tipo de mercado.

Ana Fernandes - Se você tem, também conserve, porque os serviços eles são construtivos. Por exemplo, a sensação que eu tenho hoje é que a arquitetura está caindo na vida. Você tem hoje uma ampliação da clientela de arquitetura, pelo menos tem do núcleo de pessoa que passam a ter arquitetura como referência ou se não arquitetura em teste...
Sônia Marques - A Ceça Guimarães, lá do Rio, que foi colega de "casa", isto é, do IPHAN e que também é pernambucana, falou, outro dia, uma coisa ótima. Eu estava falando do mau gosto, dessas coisas pós-modernas, do Aeroclube daqui... E ela falou assim: "Mas Sônia, é a democratização, você sabe Sônia, Paulo Coelho é um novo Jorge Amado, não é? E arquitetura é assim também. Se tem mais gente consumindo serviço. Você queria o quê?". Eu acho que a Ceça tem toda razão, se tem mais gente consumindo serviço, é difícil acreditar que os novos ingressos no mercado seja de pessoas que vão achar graça naquele galpão de Lelé, que precisa de um nível de leitura completamente diferente. Ficar ouvindo Sollers não é tão fácil. Ë mais fácil ouvir o Sabadão Sertanejo, com certeza. Mas que tem mais público, eu acho que sim. Por isso eu não defini as questões que quero trabalhar no meu pós-doutorado. Porque eu queria uma interlocução, porque eu queria pensar, eu acho que o problema hoje é como o do art and crafts do século XIX, do Morris. Estamos aí com novos meios de produção do edifício -dos materiais de construção, aos moldes de gestão, passando pelas formas de representação- que o arquiteto tradicional não domina e não mais sob o domínio de uma elite aristocrática que caiu...e está aí a máquina. A nossa exposição universal... e quem vai dar conta disso? Não dá para ser contra a globalização... Mas também não dá para aceitar essa coisa que está aí, essa epidemia de parques tem'ticos, Disneylândia, vulgarizações. O que vai sair como uma nova art and crafts? O que vai ser a nova Bauhaus!?! Para mim é um grande drama!

Ana Fernandes - Mas eu sinto um pouco por aí também, porque hoje você tem uma reproblematização das áreas, não só da arquitetura, mas as áreas em geral, em particular nas universidades, e que é exatamente isso: um período de transição...
Sônia Marques - Evidentemente que quando você classifica alguma coisa como período de transição é uma hipótese.Só se sabe a posteriori se houve transição de alguma etapa para outra. Periodizar antecipadamente é sempre ainda mais problemático. Além disso, a gente sabe que classificar como transição também tem um débito com um certo raciocínio evolucionista. Mas, eu admito que só posso pensar desta forma. Então pensando um pouco assim - que é como organizo as minhas idéias - eu fico sempre preocupada, como naquele dia em que eu dormi na casa do Pasqualino, lá em Itaparica. O Pasqualino já está anos luz na minha frente e eu não consigo pensar essa coisa fragmentada. Então, quem sabe, é muito mais esta abordagem que eu precise para classificar.

Ana Fernandes - de qualquer maneira, independente de um pensamento mais tradicional. Uma coisa importante é você perceber existem literalmente dominantes, e que essas dominantes não são claras e não sei se estavam claras a cinqüenta anos atrás. Mas para as pessoas esse período fosse muito mais complicado de perceber exatamente o papel de cada um nesse processo. Mas enfim, é nesse redesenhar da profissão que passa por uma elitização absoluta, por uma desqualificação total, como é que você vê em termos de perspectivas.
Sônia Marques - Eu falei mais na minha trajetória, então o que é que eu pensei... a grande mudança que eu percebo... Você pega assim os anos 30 e você tem os prédios, os arquitetos. Estes, se você conta na mão, são dez, porque aí vem os outros da Europa... mas até os que vêm de lá, os Italianos, franceses e outros que sejam... Quando eles chegam aqui nesse mundo, eles não são , não foram considerados arquitetos, porque a formação de engenheiro aqui era muito mais forte. Eu acho que é Lúcio Costa mesmo que cristaliza para o país uma primeira figura do arquiteto, mas, que, na verdade, ela vai se realizar com Niemeyer. Eu acho que um estudo entre Lúcio e Niemeyer aponta para paradigma profissionais diferentes, apesar de estarem os dois sempre juntos: Brasília... Eu estou propondo outra leitura. Eu estou propondo uma leitura por geração. Nesta Lúcio vem bem antes, solidário às suas origens paternas, o pai , creio, era Almirante, e a elites pertencentes ao Brasil antes de ser moderno, antes da revolução de 30, e que pega isso, junta, faz o discurso nacionalista necessário. Que Deus sabe onde é que está a nacionalidade desta arquitetura brasileira!! Mas seja o que ele deseja e diria que para a igreja barroca... E este discurso é tão forte, tem uma pregnância tal, que a gente está em 2002, Glauco (Campello) acaba de lançar um livro, que é exatamente o que Lúcio Costa escreveria há 80 anos atrás. O brilho da simplicidade - título do livro de Glauco - conta como as Igrejas franciscanas e os barrocos deram a chave do Modernismo. Lúcio Costa deve ter assim... gozado no túmulo. Você vê o que é uma pregnância de um pensamento de 80 anos atrás que acaba fazendo com que as pessoas se refiram a uma construção hipotética e discutível como se fosse uma evidência.
Evidentemente, o que é mais sintomático e isso deve interessar para você é que, a aula inaugural da UFPE do ano 2002 (na verdade segundo semestre de 2001, por causa da greve) foi dedicada à apresentação do livro de Glauco. Na ocasião, o vice-presidente do IAB/PE, um jovem, de quem fui professora e que está estudando profissão, me chamou para o debate. E a primeira coisa que o Glauco disse foram desculpas. Começou se desculpando pelo o que o livro não é... Não é sintomático? Um cara, oitenta anos depois, escreve um livro no mesmo tom do que podia ser escrito na década de vinte, porque o Ministério da educação chamou ele para fazê-lo!! E você sabe como é uma batalha para publicar um livro neste país! Mas ele foi presidente do IPHAN. Então quando ele senta numa aula inaugural em Pernambuco, que é a terra dele, sendo ex-presidente do IPHAN, autor de uma obra qualificada no Brasil todo, premiada, como o projeto da SUDENE que é dele, enfim, e outras coisas. Então, ele senta na academia com o livro dele publicado, homenageado, e começa se desculpando!!! De que? "Não é um estudo, isso não é um trabalho acadêmico, eu não fiz pesquisa, o meu livro não é um livro de história da arte, o meu livro não..." Eu achei tão sintomático, era um sinal de que ele tinha compreendido que a profissão havia mudado. Ele sentiu o medo que os arquitetos práticos tem da academia hoje. Eu morro de rir! Podia-se até pensar em alguma revanche dos fracos e oprimidos: os teóricos da academia que fazem parte daqueles "que não sabem, só ensinam" agora de vez em quando atemorizam os práticos, os sabidos e experientes. Eu morro de rir, porque, já aconteceu em algumas ocasiões que parecia que eu tinha alguma coisa esotérica, uma arma escondida, uma coisa prestes a lançar uma flecha e que eles não agüentam ouvir. E toda vez que eles participam de mesa de debate comigo, eles acham que vão ser bombardeados. O que absolutamente não me interessa fazer. A tal ponto que quero mais é ficar caladinha, comendo meu aipim lá em Pernambuco, completamente neutra. Eu não sei o que é que tanto incomoda... Quer dizer, eu sei: a falta de referência de quem foi extremamente prestigiado e não está mais! Então, o prestígio profissional caiu, a legitimidade caiu, e a clientela de prestígio e gosto das elites educadas caiu.

Ana Fernandes - Um mal do pessoal que trabalha nessa área. O que aconteceu com o IPHAN? Ele está completamnete congelado, ele não renovou as pessoas, então você continua com um determinado tipo, com uma determinada forma de pensar... num mundo que mudou completamente. O IPHAN é hoje uma instituição, particularmente complicada.
Sônia Marques - Mas o que é mais lindinho nessa história toda, é como o IPHAN que eu pensei que ia fechar, como o IAB, que eu também pensei que ia fechar...pois são, para mim, instituições do tempo do glamour... Uma dos anos 30, outra dos anos 50, uma do Brasil antes da revolução de 30, antes de ser uma federação, em "economês", instituições fruto das duas substituições de importação, a de 30 a de 50, não é isso?, pois são, o IPHAN e o IAB. Duas Fênix, ambas estão ressurgindo das cinzas!!!

Ana Fernandes - Isso parte da nova lógica de expansão?
Sônia Marques - Exatamente. Expansão pós-moderna.

Ana Fernandes - Mas a economia urbana hoje é movida a isso.
Sônia Marques - O IAB tem dinheiro, tem aumentado as afiliações, a representatividade. Inclusive sensibiliza o jovem. Eu acho surpreendente este revival!!

Ana Fernandes - Mas aí é que está. O IAB passou a ter outro papel na organização da profissão. Porque, se a gente considerar que estamos em um período de sintetização, o arquiteto ganha outro espaço... Mas quais os desafios que estão colocados aqui pensando na formação e no mercado de trabalho.
Sônia Marques - Veja bem...eu acho que esta pergunta na forma em que você a formula, isto é de quais são os desafios, não caberia na perspectiva da sociologia das profissões. Quando você coloca isso, coloca como uma pessoa de dentro. Isso significa: o que é que a gente precisa fazer para sobreviver, o que a gente precisa superar... Você quer uma resposta programática, normativa, um guia de conduta...

Ana Fernandes - o ponto de partida é: existem faculdades de arquitetura e existem uma produção de arquiteto e eles precisam existir. A menos que você coloque em cheque a existência dessa profissão. Que é uma coisa possível.
Sônia Marques - A coisa que eu acho mais surpreendente nos últimos tempos é a reconversão profissional que os advogados conseguiram fazer no Brasil. Quando eu fiz vestibular na época se dizia que a profissão de advogado "acabou". Pois hoje, seja pela quantidade de concursos na área pública que ampliou-se, seja por mudanças na vida cotidiana, que exigem, como no modelo americano que as coisas se resolvam a partir da frase "eu vou chamar meu advogado", ou seja, a vida contratual invadiu a vida informal e, para a juventude brasileira, direito é hoje o vestibular mais competitivo. Quando eu fiz vestibular, quem quisesse passar em Direito passava. Não tem coisa mais arcaica que essa vocação bacharelesca brasileira, mas eles tiveram que fazer uma reconversão profissional, que você acha impossível ocorrer com o arquiteto. Mas, essa última eleição do IAB lá em Pernambuco foi muito engraçada. Há quinze dias atrás... eu comentei com alguém: o IAB de Pernambuco, quem é que quer mais? Tem não sei quantos mil arquitetos, só setenta, trinta, quarenta votaram. Uma diretoria foi eleita apenas por esse número de pessoas? O que é que essa juventude quer? O que é que serve disso ai? De repente, me dei conta, serve. Não só serve, como teve um embate jurídico e em uma das chapas concorria a filha do vice-prefeito, que é arquiteta. E essa chapa acusava os arquitetos de elite de quererem eternizar-se no poder. Elite, que, no caso local, era representada por Marco Antônio Bortoi, filho do Borsoi, então assis estava nomeado... Para a chapa contrária "à elite que se perpetuava" ser arquiteto não é só ser dono de grandes escritórios para fazer grandes projetos, pregava contra este modelo a democratização, a renovação, e a pluralidade da inserção ocupacional. A pluralidade é outro termo de economia. Não era inserção no mercado, era outro termo, mas o sentido era esse. Ai eles entraram pesado, que era contra os grandes escritórios. Se você for cotejar uma chapa com a outra, as argumentações de ambas as chapas soam extremamente falsas. E eu já tinha demonstrado isso na minha tese, já tinha aprendido isso na minha vida, numa eleição em que fui concorrente à vice-presidente... Numa chapa reunia-se quem nasceu na Ribeira, quem tinha capital cultural, quem nasceu abençoado porque viveu. Tinha uma composição feita ali, mas ao mesmo tempo tinha um embate clássico. Numa chapa você tinha umas pessoas de um certo capital cultural, se você for pesquisar direitinho quem é que organiza esse capital cultural? A direita, o açúcar em Pernambuco... junto com os bem nascidos do açúcar, naquela época, vinham os intelectuais de esquerda do partidão, do partido comunista. Nunca vi uma aliança tão maravilhosa. O outro lado era a esquerda nova, não oligárquica, como PC do B e PT. Lembre-se que o PT em Pernambuco não é charmoso como em São Paulo. Numa chapa com esta predominância, você pega uma meninada que não tem escritório de projeto bem sucedido. Então, você tem uma trama, que você não pode compreender através de uma relação primária, de tipo causa e efeito. É uma renda...mas que se você fizer uma peneira mais fina, em última instância, você chega àquela razão de uma determinação econômica e dá a mão à palmatória a Marx. O engraçado nessa história é o seguinte: as distinções entre os emergentes e a elite, as alianças e onde há exclusão. É a nova classe média, é um novo espectro. Fica na prefeitura, fica na secretaria de planejamento, fica achando que está fazendo uma grande revolução social porque está trabalhando para baixa renda, está fazendo trabalho de participação popular. Hoje, em geral, em termos estéticos e culturais são os setores mais conservadores da profissão, com certeza. Porque hoje mudou tudo. Quando eu estudei e nos meu tempo de recém-formada, quando comecei o papo era: "Ah, você é arquiteta? Tem algum edifício, alguma casa construída?" Hoje é assim : "Ah!...a senhora é arquiteta? Esta expondo na Casa Cor?". Eu acho, caricaturizando, essa mudança de referência em 30 anos de profissão extremamente sintomática, Ir na Casa Cor é caro... mas muitas pessoas terminam conseguindo ir, é uma coisa relativamente democrática. Antes, quem ia ver os trabalhos de Niemeyer? Os edifícios públicos que se ofereciam à cidade? Na casa cor, as pessoas vão, olham uma cor de quarto...tal...e isso está legitimando o ser arquiteto. Ao passo que antes ser arquiteto era ser autor do monumento. É toda a diferença entre obra de arte e produto ou serviço. Eu disse, na minha dissertação e depois na tese, que a legislação do CONFEA, que foi considerada como uma conquista sobre os engenheiros, na verdade não era nada disto. Ela apenas refletia o que os arquitetos achavam. A arquitetura, o trabalho do arquiteto difere daquele do engenheiro porque tem intenção artística. Era o que o Lúcio Costa achava. A cidade tem um bando de construção, agora só tem alguma arquitetura.

Ana Fernandes - Eu acho que tem alguma coisa de arquitetura que não necessariamente os arquitetos fazem. O que eu sinto é o seguinte: a gente hoje está considerando um pouco da referência; tem duas formas de problematização da arquitetura: de um lado você tem a problematização corporativa da arquitetura, que é aquela que precisa produzir espaço, de grande legitimidade social, que em geral são estreitamente ligadas ou ao consumo acelerado ou a legitimação da gerência. E outro lado, eu acho que ainda uma coisa confusa, mal formada, emergente, que é a problematização da arquitetura enquanto direito. Não a arquitetura enquanto a concepção elitista da profissão, mas a arquitetura enquanto digamos(...) Ana completar o trecho - fim do lado da fita.
Ana apresenta Alfredo Behrens (de São Paulo)
Alfredo - Apenas 50% das novas moradias são produzidas por arquitetos. Bom, num país em que se pode pagar o serviço de um arquiteto. Nas nossas cidades subdesenvolvidas hoje, toda essa infra-estrutura não existe, a tendência a verticalização é imprescindível, porque se você afasta se afasta daquele centro não tem serviços públicos. Com essa verticalização você tem que um arquiteto é capaz de proporcionar moradia para cinqüenta famílias. Coisa que não existia na década de 30, então, necessariamente a demanda de serviço de arquiteto passa a se concentrar na construção de prédios. Que desemprega boa parte do contingente de arquitetos que estaria formando e que procura outra saída em desenhar móveis, cinzeiros e a Casa Cor.

Ana Fernandes - Veja... Primeiro, existe uma tendência de mercado, como o Brasil é concentrador de renda, a renda das camadas inferiores cada vez é menor. E a decoração virou um serviço... Outra coisa, é que por uma série de processos, eu acho, a questão da arquitetura se generalizou. Porque que ela se generalizou? Primeiro, porque você expandiu de tal forma o ensino que você hoje congrega camadas sociais, que não são mais a elite dos anos 30. A segunda coisa, eu acho que as referências de demandas sociais elas se sofisticaram num certo sentido, quer dizer, hoje não adianta só ter a casa, mas tem que ter a casa que tenha conforto, que tinha ventilação, que tenha infra-estrutura, que tenha equipamento público, que tenha acessibilidade, que tenha proximidade dos centros de empresa, etc. Quer dizer, é uma construção social. Que acaba desaguando numa solicitação profissional como a que está sendo feita em relação a arquitetura hoje. Por outro lado, eu não tenho... pode ser um pensamento um tanto, daquela coisa que determina o mundo...que eu brigo com Pasqualino o tempo inteiro, um modelo hoje, que a capilaridade do crédito é de tal tamanho, tal importância, que a arquitetura, ou determinadas fatias da profissão do arquiteto, acabam sendo fundamentais para isso. A regularização fundiária promovida pelo BID do meu ponto de vista, pelo Banco Mundial, não é outra coisa a não ser, possibilidade de regularização, de contrair importância de colocar isso como contrapartida de crédito. Eu não tenho dívida. Nunca acreditei que o Banco Mundial tivesse algum interesse humanitário. Mesmo porque, cada vez mais, ele opera como Banco internacional. Com juros, com taxa de juros, regulados pelo mercado, etc. Aquele caráter que ele em alguma empreendimento, até chegou a ter de subsídio, ajuda ao desenvolvimento, etc. Enfim, pelo que eu tenho visto não existe mais.

Alfredo - Existe mas não para o Brasil.

Ana Fernandes - Para África! Para aquela situação que é melhor manter, é melhor conseguir estabilidade política do que luta tribal que acaba com toda mundo.

Alfredo - Mas esses arquitetos que estudam como construir casas, e acabam desenhando móveis não teriam perdido muito tempo...

Sônia Marques - Essa que é a questão. Não, eu não acho que acabam desenhando móveis. Você tem uma geração nova. Um suporte importante, porque o corte geracional tem haver com o que mudou no interior de uma cultura profissional de uma geração para outra, mesmo sob constantes históricas, sócio-ecônomicas, variáveis de mercado, etc...

Ana Fernandes - E a consultoria gratuita, você colocaria como corte geracional?

Sônia Marques - Eu acho que os cortes geracionais têm que ser analisados numa perspectiva dupla. Em relação aos cortes históricos clássicos econômicos, ao macro-contexto e em relação à evolução da própria profissão. Porque se você pegar o mercado de economia, ou de medicina ou direito, achará uma série de aspectos que não são validos para o mercado de arquitetura. Por quê? Porque você tem que ver qual é a base cognitiva de cada serviço profissional, em cada momento da conjuntura. Porque para o arquiteto esta foi favorável a partir da revolução de 30, na primeira industrialização e sobretudo nos anos 50 com o desenvolvimento do Brasil. Vai declinando a partir de 64. Nos anos 70, o mercado amplia-se, mas, é conduzido por uma clientela pouco exigente; a produção de muitos serviços profissionais de arquitetura sem qualidade, "desqualifica" o profissional, se pudéssemos resumir desta forma. Se você pegar algumas profissões ali não entram nessa conversa de força. Se você pega um corte geracional hoje... veja só : a concorrência em Pernambuco para Design estava maior que para Arquitetura quando meu filho fez vestibular, em finais dos anos noventa. Então, se está mais competitivo é porque o mercado está melhor. É uma lógica que não precisa nenhum economista demonstrar.

Alfredo - Eu acho inclusive que se uma pessoa é forçado a morar em prédios que não permite uma grande expressão individual do lugar onde ela gostaria de morar, como antes... o arquiteto fazia a tua casa. Hoje em dia você mora onde pode. Nesse processo a pessoa coloca muito mais esforço na elaboração interna...

Sônia Marques - Sim, é isso aí. A questão que eu estou dizendo do móvel, do mobiliário, é que tem gente que fazendo um móvel está ganhando mais do que muito projeto. Bom, eu acho que a gente tem uma tradição brasileira que a grande arquitetura brasileira foi uma arquitetura não paga, que foi a arquitetura pública, de monumento. Só essa história levou cinco anos, formou. Aí vem o raciocínio do economista, mas precisa de cinco anos de curso? Se for para fazer o que o mercado absorve, que é decoração, precisa cursar cinco anos de arquitetura e ainda agüentar tanto professor de História e Teoria, como eu, chateando a vida do estudante? Tudo isto para fazer decoração... E eu acho que isso agora está resolvido. Porque tem o curso serial e o pessoal está pedindo decoração. As particulares estão montando decoradores... e qual o problema? O grande problema é o seguinte: o que é que realmente instaura novidade. A questão que o ensino nunca está ajustado às questões de mercado, seja nos EUA, na França...
A lógica do mercado de arquitetura é muito parecida com a lógica do mercado de moda. Que é extremamente cruel. Então, isso que Ana está falando, da lógica social, da qualidade... mas é um mercado residual. O grande leigo da profissão, chamei um arquiteto! Se você for a uma casa, onde houve a intervenção de um arquiteto, quem pagou tanto por um arquiteto quer exibir esta presença, em geral. Daí que não pode haver... a discrição, sob a nova democracia cheia de emergentes de padrão Caras, Miami, Orlando. Discrição exige uma leitura. Na ausência, no analfabetismo, dizem:"Isso você mesmo fazia, não precisava de um arquiteto". Precisa de uma leitura muito mais apurada. Então o arquiteto é chamado, como estilista, para botar a melancia na cabeça, de certa forma. O arquiteto chega como a distinção. E o que era a distinção? Para as vanguardas, ou os empresários, ou as elites, dos anos 30, 40...Nunca que um Romário, Carla Perez vai querer que Brunette de Fracarolli deixe de botar três cortinas onde bastava uma...

Ana Fernandes - Quem é Brunet de Sacarole?

Sônia Marques - Você não conhece Brunet de Sacarole ? A paulista decoradora, que junto com Sig Bergamin e João Armentano aparece em tudo que é revista de decoração de interiores...Ela já virou até minimalista de tão cansada de tanto enfeite. Então, essa coisa da novidade, você tem que vender serviço. Evidentemente que esse serviço chega de Milão. Aí não sei quem compra, vai lá e repete. Isso, aliás, não é nenhum fenômeno novo, porque muitos dos nossos modernistas agiram assim. E a gente vê inclusive a diferença quando vários arquitetos que foram modernistas muito bons e que hoje são chamados para fazer coisa diferente não conseguem dar o "aggiornamento". Porque eles aprenderam de memória a fazer uma coisa modernista, aprenderam mimeticamente, mas, não aprenderam o que era arquitetura em geral. Então, quando eles tem que trabalhar com outra linguagem fazem "n'importe quoi".

Alfredo - Como se escolhe um arquiteto para fazer uma casa essencialmente para nós? É outras coisa que ele já fez?

Ana Fernandes - E pela inserção social que você está. Se você tem três filhos, você precisa de três cômodos.
Acho que algo ficou truncado aqui pois minha resposta não corresponde às perguntas, será que o recôncavo, as caipirinhas e a companhia enevoaram minhas idéias?

Sônia Marques - E isso é uma coisa muito legal para mim, pois, pelo fato de estar em sala de aula. como professor de história, não dá para saber se o aluno é bom de projeto. O cara pode ser bom de papo e pode ser. Ruim de desenho, de concepção. O ruim é como eu vivo escola...o mercado é outra coisa.

Ana Fernandes - A faculdade foi chamada para participar de um prêmio da ADEMI, que é a associação Dirigente de Empresas Mobiliárias. Eu fui. Ai eu vi todo projeto, e escrevi um parecer sobre aquilo. Na hora que eu li o parecer, os caras me olhavam assim... como se fosse algo de outro mundo. Como é que alguém está falando essas coisas. Isso porque eu passei por um processo de depuração. Não é um prêmio de arquitetura, é um prêmio de empreendimento imobiliário. Você tem que deslocar a coisa. E ai para o presidente do SINDUSCON falei : vamos fazer uma discussão de arquitetura na faculdade que arquitetura na Bahia vai mal. E ele me disse: "Mal, mas nossos arquitetos são tão felizes... são tão reconhecidos". Então vamos discutir se vão realmente bem! é muito complicado!

Sônia Marques - Sim, mas o Costa de Sauípe por exemplo, eu fui para Vitória, num congresso de Turismo onde o arquiteto...

Ana Fernandes - André Sá!

Sônia Marques - Minha ignorância é tanta, que eu fiz uma palestra, logo depois da abertura do congresso e ele estava lá. E daí eu estava falando nessa história, que para não ter uma visão maniqueísta em relação ao turismo, que finalmente, várias coisas estariam totalmente destruídas mas outras ficavam. Quer, é claro, havia coisas do tipo Costa do Sauípe e que eu li numa revista dessas de turismo falando sobre o que é ser brasileiro e que perguntava após o onze de setembro de 2001: Você faz turismo no Brasil e vai para onde? E haviam respondido:"Me orgulho de ser brasileiro, de ir para Salvador, ver o Aeroclube!". E uqu eu achara isto terrível, pois o Aeroclube é a coisa mais feia que existe aqui. Além de ser recente, junto da riqueza arquitetônica que se encontra aqui... Se você falasse de um Aeroclube em outro canto, em cidade que se urbanizaram tardiamente.. Porque é aquele shopping típico de periferia norte-americana, para pegar o carro e ir quando você está chateado da vida e não tem mais o que fazer. É o Aeroclube. O cara colocou isso numa revista, como a maravilha de Salvador, eu achei um pouco demais! Alguma coisa está acontecendo...

Ana Fernandes - Eu acho que não é imediatamente memorável do ponto de vista econômico, que é a autonomia cultural...

Alfredo - Tivemos uma conversa anos atrás com um jovem arquiteto francês. Ele tinha visitado Brasília e tinha ficado encantado e tinha feito muitas coisas, estava casado com uma maquetista que trabalhava para Piano e Roger, aquela turma... E disse: nós fazemos novas cidades... Não precisamos disso. Ai eu disse: "Bom, o Brasil cresce 3% ao ano. Necessariamente não cabem as pessoas nas casas das pessoas que estão morrendo, como na França. Então você precisa expandir essa cidade ou criar uma nova. Por isso há uma grande demanda para arquitetura". Agora a pergunta para vocês: o Brasil está envelhecendo. No ano 2025 vai ter bastante mais velhos do que tem hoje. E então? Aonde que vai sair a nova demanda dos arquitetos?

Sônia Marques - A questão é lógica. Mas o que é que é a necessidade? Não Há como confundir necessidade e demanda. (Rubens Vaz, quando na direção do BNH era cruel, mas era claro sobre o assunto). Os velhos que tiverem dinheiro para comprar... podem fazer um novo perfil de clientela... Agora, ainda tem que considerar outra diferença entre demanda e necessidade, que é o fato de que "neguinho" é capaz de passar fome, e, ao invés de comprar a cesta básica, botar mega hair no cabelo... aí você já está trabalhando em outro campo da necessidade, pois há as da fantasia e as do estômago, para citar Marx. E a arquitetura faz parte do campo da fantasia.

Alfredo - Eu não concordo. É uma despesa muito grande para uma família ficar só no terreno do imaginário.

Ana Fernandes - Não é não. Porque assim, primeiro, que a demanda em relação a arquitetura tem sido ainda agora pública, que é uma demanda que está sendo colocada em relação ao Estado. A discussão que se estabelece em relação a qualidade, ao tamanho das habitações, a qualidade etc, etc. tem como interlocutor o estado, porque quem deve fazer esse tipo de coisa. Não é um mega hair individual. Porque o mega hair individual é a classe média que está ampliando a demanda em relação à decoração... Mas a população de baixa renda mesmo e tem uma demanda que não se dirige ao arquiteto. Se dirige ao Estado ainda...

Sônia Marques - Mas você está assumindo que o estado está realmente ouvindo e sendo intermediário da demanda de sua população o que é dificílimo.

Ana Fernandes - mas é um ponto de conflito, agora é sintomático que o estado, no caso da Bahia, tenha contratado a para fazer alagados e por outro lado várias outras experiências de habitação popular são experiências daquelas que você estava descrevendo dos anos 70. Ruim, de péssima manutenção, nada de durabilidade.

Sônia Marques - Se você pegar o Pelourinho, Bom Jesus do Recife... A requalificação de centros... Se você pegar pelo lado da demanda da população, você não explica.

Ana Fernandes - Porque a população no nosso Pelourinho foi expulsa.

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