Ana Fernandes - Estamos identificando basicamente três
blocos: o histórico da profissão, quais as atividades
atuais e quais as perspectivas. Outra coisa que nos interessa
também são indicadores de em qual estágio
está a divisão de trabalho da arquitetura na Bahia.
Quem contrata quem, como é a trama de demanda de mercado
de trabalho. Nas perspectivas, que setores parecem mais pujantes,
e o papel do mercado internacional.
Neilton Dórea - Formei pela UFBA saindo no início
de 75, e como todo arquiteto recém formado, com aquelas
indecisões. Sempre gostei muito de urbanismo. Durante
o período da universidade trabalhei, como estagiário,
alguns temas ligados ao urbanismo, tendo muita decepção.
Porque a gente fica pensando em uma situação estritamente
profissional, entretanto o ritmo passa ser muito mais político
do que profissional, então, você vê que nem
sempre o que você decide, o que você implementa
em relação ao cidadão e a cidade é
usado, é muito mais decisão política. Tive
minha experiência em órgão público,
e também em empresa privada, trabalhando nos projetos
de Remanso e Casa Nova, tendo como coordenadores Isaías
Carvalho e Roberto Cortizo. Foi um trabalho muito interessante,
mas vi as limitações do projeto, quase tudo que
era proposto, tinha alteração pelo presidente
da CHESF. Mudava tudo com um direcionamento muito mais de prazo,
redução de custo... Claro, tem isso tudo! A gente
como estudante vê isso tudo e fica um pouco chateado,
fica meio frustrado. Achei que não fosse mais trabalhar
com urbanismo, trabalhando apenas em projeto de edificações
que, talvez, fosse mais gratificante.
Ao me formar fui parar na Bahiatursa, ficava meio turno lá
e no outro meio turno implantei o escritório. Não
demorei muito na Bahiatursa. Fiquei só seis meses. Pedi
demissão... Fazia hotéis, reformas em Lençóis,
Cachoeira... Sempre manutenção, pequenas reformas
e fazendo também análise de projetos para serem
implementados nas cidades, voltados ao turismo. Eu me lembro
que meu ponto de decisão para sair da Bahiatursa foi
quando fiz a análise de um projeto que estavam implantando
em Amaralina, era um "cacete armado", que para ter
um financiamento aprovado, tinha que superar uma série
de restrições. No final não aprovei o projeto
e, para surpresa minha, foi aprovado na mesa do presidente.
Não gostando da situação, subi no dia seguinte
a presidência, que eu tinha acesso, e disse: "Você
não precisa de arquiteto. Não adianta eu estar
aqui, passar um mês analisando um projeto, dar o parecer
contrário e, no final, você aprova!". Peguei
meu chapéu e fui embora! O que foi melhor, porque me
dediquei somente escritório.
Comecei a trabalhar e, realmente, o mercado nunca foi fácil
para arquitetura. Hoje é até mais complicado.
Antigamente, você tinha um leque maior, e o arquiteto
pelo menos, eu diria, era mais respeitado. Hoje eu tenho minhas
dúvidas quanto a isso... Comecei a trabalhar, já
tinha um certo relacionamento, e comecei fazer residências,
muitas residências, muitas sedes de empresa, empresas
de veículos, lojas... A Bahia não tem um mercado
com corporações grandes, com multinacionais, como
em São Paulo. Sempre são empresas menores com
700 a 1000m² de área projetada. Assim, com esse
mercado consegui expandir o escritório. Sempre tive uma
visão do trabalhar com arquitetura, uma visão
da atividade do arquiteto no tripé: o exercício
profissional, a formação profissional e as entidades,
ou seja, a política profissional. Desde o primeiro ano
participei das entidades. Então, eu tinha a formação,
o exercício e a parte da política profissional,
tentei atuar nas três. Na escola de arquitetura, passei
cinco anos antes de entrar. Achava que não deveria entrar
porque eu não tinha a experiência necessária
para ser professor. Só entrei na Faculdade de Arquitetura
em 80. Tive uma decepção muito grande quando fui
ao IAB, porque havia uma visão só política,
no sentido partidário, na década de 70, o que
eu não acho totalmente incorreto... Tive muita briga
com Edimilson, ele olhava para a minha cara e dizia "o
que você está fazendo aqui?", eu era o único
profissional liberal, o resto era tudo funcionário de
órgãos governamentais... Edimilson dizia "Você
não existe, não existe arquiteto profissional
liberal, arquiteto é, na maioria, sempre empregado",
uma visão bem dele. Eu insisti, continuei lá,
terminei como diretor, vice-presidente, nunca quis ser presidente
de lá, me impuseram... Mas, na realidade, nunca quis,
porque é um negócio meio ingrato, você tem
que assumir mesmo, e quando a gente não tem o respaldo
de um salário fica meio difícil!!!
Fiz a minha estrutura profissional usando esse tripé.
Acho uma coisa interessante e que todo profissional deveria
pensar nisso, não só na arquitetura, mas em todas
as profissões ligadas à cidade. Entendo que todo
homem deve ser um ser político. Foi interessante esse
procedimento, consegui desenvolver minha formação
acreditando a que arquitetura deve ser sempre direcionada para
o usuário. Eu não acredito que o meu cliente seja
quem me paga, o contratante. Meu cliente, primeiramente é
o usuário. Talvez por isso eu não tenha sido bem
aceito no mercado imobiliário. Nesse mercado o cliente,
é quem paga! Essa é uma exigência do mercado
imobiliário, você tem que atender a parte capitalista
e o usuário que se dane!
Ana Fernandes - E nessa época, você trabalhava
sozinho?
Neilton Dórea - Não, era eu e Luis Humberto.
Foi uma associação que durou 19 anos, tiveram
muitas coisas positivas, houve uma soma, com vantagens para
ambos. E foi um período, digamos, bastante interessante.
Eu acho que não é bom, você como arquiteto
se lançar sozinho. Entendo que sempre é bom você
ter pessoas com quem você discuta, ouvindo pessoas que
você conhece para sedimentar as certezas e depurar as
incertezas. Outro dia, Itamar Batista ligou para mim e pediu
que eu fosse ver um prédio que ele estava fazendo, fui
lá discutimos, ou ele vem aqui e a gente discute, sempre
"trocando figurinhas...".
Sempre pensei que deveria ser muito profissional, sempre o escritório-empresa.
Quando comecei era aquele negócio do "Atelier".
Para os caras não tinha prazo, era sonhar... vejo o Arquiteto
como um profissional, no sentido mais amplo, tanto que a minha
primeira atitude foi fazer um sistema empresarial até
com contrato, para os caras que contratavam a reação
era sempre contra, porque o normal era começar a trabalhar
depois acertar preço... Eu sempre acertava preço,
prazo, o que eu deveria fornecer, o que era minha responsabilidade
e o que era do cliente. Então, gerava uma reação
com pessoal, antigamente. Consegui implementar esse direcionamento
dentro da empresa, tratei o escritório de arquitetura
como empresa, desde o primeiro momento.
Ana Fernandes - E eram só vocês, havia estagiários...
Como era?
Neilton Dórea - É, tinham os estagiários
e os arquitetos. Durou de 75 a 94. Em 94 houve uma separação,
foi muito mais por uma dicotomia conceitual na própria
arquitetura, a gente achou melhor separar... Eu nunca trabalhei
com Luis Humberto na escola, nunca participei com ele em equipe,
foi uma coisa que aconteceu... O escritório foi implementado
naturalmente.
Ana Fernandes - Com obras públicas, vocês
chegaram a trabalhar?
Neilton Dórea - Não, sempre trabalhávamos
com empresa privada. A gente tinha muitas casas, sedes de empresas
e urbanismo...
Ana Fernandes - Chegou a ter alguma obra industrial?
Neilton Dórea - Não. Trabalhamos também,
muita coisa de urbanismo. Trabalhamos com conjunto habitacional,
fizemos o que era "Mochila I, II e III", atual conjunto
habitacional João Durval, em Feira de Santana, foram
15 mil unidades. Fizemos a parte de urbanismo, as células
não fizemos porque eram células da URBIS... Até
hoje não fecharam todo o projeto. Foi a época
que fizeram muitos conjuntos habitacionais. Sempre contratado
num procedimento que eu não concordo muito, uma coisa
que eu já comentei, não existe uma visão
de como trabalhar em arquitetura, os procedimentos e contratações.
Eu acho que o modo que está sendo feito nos últimos
anos totalmente equivocado, começando pelo Governo. Entendo
que é uma briga que o pessoal deveria comprar. O IAB
deveria ter comprado. Sempre briguei e tentei, mas o IAB nunca
chegou a comprar, os projetos de Arquitetura ficam num pacote,
junto com a licitação da construção,
no final não existe controle de qualidade. As construtoras
não contratam por qualidade, só visam o preço
do projeto, aquela distorção que existe em tudo.
Naquela época já existia isso, mas conseguíamos
negociar e obter uma qualidade boa de projeto, não impor,
mas convencer o cliente contratante que nós estávamos
fazendo uma coisa que seria melhor em termos de rentabilidade,
mas também para o usuário. Nós conseguimos
fazer, por incrível que pareça, com a própria
OAS. Tinha umas pessoas lá que tínhamos condição
de conversar, tínhamos uma liberdade... Levamos um tempo
fazendo isso.
Depois a gente começou a trabalhar muito num mercado
que não era trabalhado por arquitetos, que era Interiores.
Se você pegar o currículo da gente você vai
ver muito trabalho desse tipo, por ano tínhamos mais
de 40 projetos de Interiores. Na década de 70 para 80.
Interiores eram considerados uma arquitetura menor. Tanto que
o nosso escritório já tinha um certo nome como
escritório de projeto de edificação e certa
vez Ricardo Albuquerque comentou: "Porque você faz
Arquitetura de Interiores?", como se fosse uma desqualificação
fazer Interiores. Eu acho que é arquitetura e não
separo. Você só contrata Arquitetura de Interiores
quando a Arquitetura não está bem resolvida. A
arquitetura bem resolvida, de um modo geral, esse é o
meu conceito, tem um arquiteto com a visão bem mais abrangente
não só estrutural, de tecnologia, mas também
o conceitual de Interiores já deve ser concebido pela
gente. Quando você é contratado e a remuneração
é justa isso deve fazer parte do trabalho, entenda-se
não o mobiliário, mas sim todo o detalhamento
e especificações.
Trabalhamos muito tempo com Interiores, foi gratificante...
Tinha essa coisa de dizer que quem fazia Interiores era o decorador
ou arquitetos menores. Houve uma mudança radical no mercado,
hoje 80% faz Arquitetura de Interiores, sendo o grande gancho
do mercado atual.
Ana Fernandes - É que arquitetura de interiores
virou uma coisa de moda hoje. Acho que as famílias mudam
mais de casa do que antigamente, e a cada mudança existe
uma reproposição da casa inteira...
Neilton Dórea - Existe isso. Eu tinha uma cliente
que dizia que ela era como Copa do Mundo, que a cada 4 anos
ela trocava de casa! Que é uma questão cultural
bem nossa, de pequeno burgês, que é incrível!
Eu tive uma cliente que mudou de um apartamento de 250m²
para um de 140m², porque assim ela trocava de endereço...
Morava na Pituba e passou morar em tal lugar que eram mais chique,
assim deixando um apartamento maior para um menor pelas características
do prédio, do bairro, etc., mas a gente tem que entender.
Eu acho que é uma tremenda babaquice, e até hoje
é assim!!!
Ana Fernandes - Quando eu penso em arquitetura de interiores,
pensando no uso habitacional eu me coloco a seguinte questão:
não é possível pensar que todo estoque
seja novo. Se o estoque habitacional não é novo,
você tem que ter adequações. Então,
este projeto de adequação é um projeto
que pode ser desenvolvido por arquitetos. Quer dizer, acho que
é uma área importante de atuação
em arquitetura. O problema é que o interior está
um pouco misturado com a idéia de decoração,
de moda, de obsolescência precoce... Ai é mais
complicado...
Neilton Dórea - Você tem uma dicotomia
muito forte da Arquitetura de Interiores com o processo cultural.
É uma coisa que às vezes eu meio sacana, respondendo
ao perguntarem qual a "tendência" atual digo
"tendência é coisa de viado!". Eu acho
que não existe a tal "tendência". Você
pode dizer que tendência existe, mas eu não aceito.
Eu sei que existe todo procedimento de atuação
profissional, você tem toda cultura como contribuição
da terra, e você não vê rebatimento na Arquitetura,
nem da de Interiores. O que você vê é o procedimento
de copiar, estrangeirizar. Você entra numa casa que teve
um projeto de Interiores é Europa pura. Você tem
uma cultura brasileira rica de artesanato e materiais, Acho
que você tem que ver, tem que ter contato com os materiais
de ponta. Mas não é uma "verdade verdadeira"
você transpor aqui o que se tem lá, fachadas cortinas
de vidro para o poente... E que a gente, a raça de arquitetura,
não pensa!!! Entra nessa linguagem de modismo... Acho
que a gente tem condição de entrar e dar uma contribuição
cultural. Quando a gente pensa em artesanato, pensa naquela
"subcultura", o que não é realidade,
é sim uma cultura muito rica, reflexo da região,
que poucos sabem absorver, buscar pessoas para absorver isso.
Tem poucos que gostam. Tem uma arquiteta que tem a capacidade
muito grande de contribuir, Janete Costa. Para mim, Janete foi
quem deu expressão, no Brasil, a Arquitetura de Interiores,
e deu integridade... Além dela ser uma Arquiteta de vanguarda,
tendo uma Arquitetura muito boa, tem conhecimento muito grande
da cultura de Pernambuco e do Brasil. E, além do mais,
ela conhece peças antigas, se você conhecer a casa
dela, verá coisas contemporâneas, mas impregnadas
de cultura, os objetos antigos, tudo naquele "mix",
que funciona legal. Se todos arquitetos de Interiores tivessem
um milionésimo do que Janete tem de competência
estaríamos muito mais bem servidos.
Ana Fernandes - E depois da separação?
Você continua trabalhando no mesmo tipo de mercado?
Neilton Dórea - Sempre tive um procedimento com
o cliente, digo brincando: "Eu faço no cliente um
trabalho de desestruturação mental". É
um procedimento que eu tenho para conseguir trabalhar. O que
eu faço, se eu tenho um cliente para fazer uma casa,
um projeto?. Marco um papo sem tempo! O cara chega as duas da
tarde e fica até sete ou oito, marco no dia seguinte
até eu conseguir entender, mas o que eu quero realmente
e derrubar a cabeça dele, entendeu!?! Todo mundo que
procura um arquiteto vem com informações nem sempre
sedimentadas, informações falsas... Chegam cheio
de revistas, vê a porta de um, a janela de outro, vê
uma casa, coisa e tal... é a maior dificuldade em tentar
fazer o que ele quer, e que, com certeza, vai dar "uma
merda"! talvez eu tenha essa capacidade, quando o cidadão
sai da reunião, ele não sabe mais o que quer!!!
Ai eu consigo trabalhar. Tanto que eu não mostro para
o cliente fachada, corte, nada! Ele aprova o projeto na planta
baixa, muito simples... Ele só vai ver a casa dele quando
estiver tomando forma. Porque, se eu começar a dar muita
informação, acabo não fazendo...
Eu sempre procurei nichos de mercado para trabalhar. Já
que eu não era contratado para fazer projeto de edifícios
no marcado imobiliário. Em primeiro lugar, pôr
não deixarem eu trabalhar como eu acho que devo, e além
do mais a remuneração eu não considero
justa para fazer o tipo de trabalho que eu faço. Então
eu sempre tive que driblar o mercado e fazer o que acho melhor.
Pôr coincidência, o nicho inicial que a gente conseguiu
abrir foi Interiores. Interiores de um modo diferente. Quando
começamos trabalhar com Interiores, na Bahia este mercado
era dominado por um cara que se chamava Pedreira, José
Pedreira tinha uma cultura muito boa, o pessoal mais antigo
conhece, mas ele trabalhava com a concepção de
Interiores da casa colonial, das marquesas (o móvel),
das palhinhas... Eu não o conheci pessoalmente, quando
entrei na faculdade ele já havia morrido, mas os que
o conheceram diziam que ele tinha um vasto conhecimento de mobiliário
colonial... Se você olhar as revistas da década
de 60, 70, era o trabalho que tinha, arquitetura de interiores
bem colonial. A maior dificuldade da gente foi trabalhar dento
de uma arquitetura que tivesse alguma coisa de raiz, mas que
tivesse características de ponta, de vanguarda. Por exemplo,
quando a gente propunha utilizar esquadrias de alumínio
em residências, as pessoas diziam que era coisa de escritório...
em casas só se usava madeira. Foi uma barra pesada para
romper! Isso na década de 70. Outro exemplo: usar cores
fortes era difícil, tudo era begezinho, clarinho... Conseguimos
por um período vender a idéia de uma cultura genérica
em termos de Arquitetura de Interiores, que tivesse algo impregnado
da cultura baiana e com proposta de elementos de ponta da Arquitetura
mais contemporânea e internacional. Não é
copiar o estilo internacional, que é uma coisa que eu
fujo... Eu até tenho que fazer análise, porque
eu tenho uma tendência de fugir de tudo que é moda.
Por exemplo, porcelanato eu não uso. Eu me lembro que
quando entrei na faculdade era moda granito e mármore,
eu não usava de maneira nenhuma, fazia de tudo para não
usar. Fui usar mármore depois da moda, porcelanato talvez
daqui a dez anos eu venha usar... Outra visão muito pessoal
minha é que não existe material para determinadas
coisas, o material está aí para usarmos do modo
e competência que der para usá-lo. Por exemplo,
eu sempre usei materiais industriais em residências, se
você pegar a primeira casa que eu fiz, em 1976. Ela já
tinha grades de tela, pisos de materiais só usados em
indústrias. Eu acho que o procedimento do arquiteto é
sempre olhar o produto com um olho diferente. Isso eu sinto
muita falta disto nos profissionais de arquitetura: "inventar
novos usos com materiais e produtos já conhecidos".
O mercado de Interiores começou a ficar saturado, com
certa dificuldade, até de remuneração.
O mercado inchou em Arquitetos e a remuneração
caiu. Acho que eu tenho um procedimento profissional de entrega
do produto, e isso tem um custo... Detalhando e produzindo uma
série de pranchas para que o cara tenha condições
de executar. Isso alguém tem que pagar e quem paga é
o cliente. Eu estou dizendo o que eu penso, essa coisa de ser
remunerado indiretamente por comissão eu sou contra,
é uma coisa que eu tenho brigado... eu tenho que defender
o meu cliente e não usar simplesmente um material "inadequado"
para poder obter uma comissão para viver...
Quando eu me separei, eu tentei remontar o escritório
de forma a terceirizar, mas eu não conseguia porque não
tinha equipe que fizesse o produto como eu queria. Não
contratei mais estagiário... podem até dizer que
eu sou professor da escola e não gosto de trabalhar com
estagiário. Isso é porque o procedimento da escola
mudou muito. Quando eu estudava, a gente conseguia trabalhar
e ter uma qualidade como estagiário próximo do
profissional. Eu não vejo isso nos estagiários
de hoje. Pôr exemplo, eu quando fui estagiário
de Itamar Batista e na Prourbis, eu tinha minhas provas na faculdade,
mas não sumia. Estagiário quando chega na época
de entregar Planejamento, você não o vê!
Eu acredito que, na minha empresa, eu não posso entregar
responsabilidade a uma pessoa deste perfil. Tenho prazo e responsabilidade
com o cliente, e, daqui a pouco, dez dias depois e o cara não
vem! Então eu passei a trabalhar com poucos estagiários
nesse período, trabalhei muito mais com arquitetos por
uma questão de profissionalismo, de contato.
Por estar no lugar certo, na hora certa começaria a fazer
restauração, sem ter o mínimo de especialização,
com isso alguns arquitetos "especialistas" ficaram
putos comigo... eu comecei fazer restauração sem
ter curso de especialização... Foi durante os
anos 90. Por coincidência, eu estava fechando um contrato
que tinha uma interferência de restauração...
Propuseram-me... Eu fiquei meio aterrorizado quando fechei o
contrato, "Poxa, eu não sei nada de restauração!".
Tentei me associar a um colega que tem o curso de especialização
em restauração, fiz a proposta de nos associarmos,
até com um certo receio da minha incompetência
na área. Ele veio cheio de estrelismo... Eu disse: "o
projeto é do escritório, entra a placa do escritório,
você entra como colaborador, como co-titular na placa,
a empresa é Neilton Dórea Arquitetura."Mas
a pessoa queria que eu mudasse para Neilton Dórea e fulano
de tal. Comecei a ler, estudar, conversar... O que eu acho uma
das grandes vantagens da escola de arquitetura é que
a gente desenvolve a capacidade de discernir, procurando o que
e quem pode ajudar a gente. O bom empresário não
é aquele que sabe fazer tudo, é aquele que sabe
montar a equipe competente. Consegui montar uma equipe, comecei
a trabalhar. fiz o primeiro, segundo, terceiro e quarto... no
final deste período eu devo ter feito quase 30 projetos
de Restauração. Eu acho que acertei, claro, dentro
de uma visão minha de restauração, que
hoje está sendo mais bem aceita. Minha visão de
restauração é muito simples. Voltando um
pouquinho, há uns 15, 20 anos atrás eu peguei
uma casa da Sadel, que era uma empresa que vendia eletrodoméstico.
Era uma casa do final do século IXX, que a Sadel comprou
para fazer sua sede em Santo Antônio de Jesus, uma casa
de esquina com todos aqueles detalhes, e na época estava
na moda usar forro de alumínio em fachadas, aí
eu fiz a proposta para o meu cliente de deixar a arquitetura
de 1880 e internamente o espaço era estruturas de aço,
piso de alta resistência em duas cores... o cliente olhou
para mim e disse "Para isso eu não preciso de arquiteto!".
Ele esperava que eu colocasse uma fachada de alumínio
do tipo daquelas que tem na Av. Sete, destruindo as casas bonitas
que tem lá... Eu disse "Aí que você
precisa realmente de um arquiteto". Foi uma briga, até
que ele conseguiu comprar a idéia e consegui manter a
qualidade de uma arquitetura histórica. Sempre pensando
assim: "o que existe vamos brigar para conservar, o que
não existe não seja representado por um pastiche".
É uma briga que eu tenho com o IPHAN, até hoje
por causa disso. Todas as vezes que trabalhamos com uma linguagem
inserindo o contemporâneo o IPHAN reagiu contra.
Comecei a trabalhar muito para o governo, o que é uma
coisa meio complicada. Eu mudei muito o perfil do escritório,
trabalhava com 99.9% de clientes privados, e nunca tinha em
meu escritório 20% do faturamento na mão de um
cliente. Durante um período eu fiquei com 80%com cliente
público, 20% privado, e fiquei assim com cerca de 50
a 60% do meu faturamento na mão de um cliente, se eu
não tivesse uma certa habilidade teria quebrado. Fechava
contratos bons, mas na hora o governo não pagava. É
uma coisa perigosa que eu já estou pensando em sair disso.
Difícil é a parte empresarial do escritório
de arquitetura. Nessa parte de trabalhar com o governo fiz um
tempo restauração, agora estou na obra do Metrô...
Ana Fernandes - Agora você tem o Metrô, como
é que isso aconteceu? Já que estamos em plena
contemporaneidade...
Neilton Dórea - Eu acho que o mercado mudou.
Durante esse período todo eu nunca fui atrás de
cliente, sempre bateram em minha porta, em 25 anos...
O Metrô foi a primeira vez que busquei trabalho. Porque
me atraiu o tipo de Projeto. Eu procurei Ivan Barbosa há
dois anos que me recebeu muito bem, e conversando com ele eu
disse: "Eu sei que está vindo o Metrô, é
licitação e quem ganha licitação
nunca são os arquitetos. Extremamente desagradável,
porque uma obra deste porte, na Bahia, não tem nosso
perfil cultural, nem de Arquitetura. O que ele me disse foi
que o Metrô era uma coisa muito específica, coisa
e tal... em resumo, nós não teríamos competência
para realizar esse projeto! Eu disse a ele que discordava porque
nós temos uma formação abrangente, para
buscar as informações necessárias aos projetos.
Houve a licitação e aquela briga toda (entre todas
as empresas participantes), encontrei Geraldo Teixeira que era
coordenador, ele me chamou para bater um papo disse que ia me
apresentar ao responsável pelo consórcio que ganhou
a Licitação. Levei meu currículo ele olhou,
disse "Muito bem, deixe aqui! Vou ver o que eu posso fazer".
Depois de um tempo liguei perguntando se algo novo aconteceu...
Ele disse que naquele dia o pessoal que iria definir o projeto
da estação estava lá e iria bater o martelo!
Fui fazer o contato e fechei o contrato da estação
, estou agora fechando outras. (Ana - Você vai ficar com
todas!?") Não, só não vou fazer as
subterrâneas. Essas já estão prontas, os
Projetos claro.
O que acontece é o seguinte, o consórcio contratou
duas empresas de projetos, sendo uma empresa americana. Uma
tinha três e a outra tinha cinco projetos, são
oito estações. O dia que foi mostrado o projeto
a Ivan, como Secretário, ele não gostou das estações
e não aprovou! Nisso estava ao lado o cara da Promon,
a empresa contratada para fiscalizar a obra, que se ofereceu
para refazer o projeto. No final Ivan aprovou as novas estações.
As da Promon..
Estou desenvolvendo o básico. Este projeto está
sendo para mim um grande problema. Empresarialmente eu tomei
uma atitude, eu quis colocar o pé dentro do Metrô.
Porque vai ter outras linhas, outras estações,
junto às estações teremos outras coisas...
e além do mais, é um segmento muito difícil
de se ter acesso. Porque para você projetar estação
de Metrô, exigem experiências anteriores. A pontuação
maior é experiência em Metrô. Eu estava vendo
e comentando com Geraldo que eu gostaria de ter feito o projeto
básico. Quem tem experiência em Metrô, tem
uma vantagem da zorra, na licitação. Estou desenvolvendo
o básico e na realidade, quem faz o desenvolvimento do
básico no mercado formal está pouco ligando para
o arquiteto, que fez o básico. Estamos fazendo algumas
alterações para adequar a nossa linguagem. Tem
muitas coisas que não vão funcionar aqui na Bahia
e que eu estou propondo mudar, sempre discutindo ao João
Batista, o autor do Projeto básico.
Com certeza o consórcio deu um valor de projeto, repassou
para a sub-conratada, tirando um Dx para ele. A sub-contratada
repassou para mim tirando um Dx. Na realidade, é que
se tivessem me contratado direto estaria muito melhor remunerado,
Estou com o intuito muito mais empresarial... O sistema de contratação
é que temos que mudar, porque está errado, ficamos
no final e sem o domínio projetual.
Esta semana tomei outra atitude, uma coisa que eu não
sabia, que pela lei quem faz o projeto básico não
pode desenvolver o projeto executivo. O que é um tremendo
absurdo! Como se fossem duas coisas diferentes. O detalhamento
de um projeto pode esculhambar totalmente o projeto, ou até
melhorar! O projeto básico é conceitual, é
uma orientação, se você pegar um arquiteto
que respeita o projeto básico, como estou fazendo com
João, é uma coisa, mas se você pega um profissional
que pouco liga para isso, ele esculhamba o projeto básico.
É uma das coisas que a gente não deveria aceitar
é isso, essa separação que o governo faz
nas licitações. Atenção IAB.
Ana Fernandes - E com relação a projetos
imobiliários?
Neilton Dórea - Para trabalhar para o mercado
imobiliário hoje, eu acredito que o arquiteto tem que
ser subserviente. Ele tem que fazer o que o dono, que está
pagando, quer. Finalmente, em reunião, o que o corretor
pensa tem mais peso do que o arquiteto. Na verdade, a gente
vira um mero desenhista. O conceitual do projeto é extremamente
limitado. Ou vai na regra do jogo, ou não é contratado.
O que acontece sempre é o que está na moda, o
que é usado é aceito. Além do mais, no
mercado imobiliário os "empresários"
trabalham sempre com a certeza. Um cara mais arrojado descobre
um nicho, atrás vem os gafanhotos e destroem... Foi o
que aconteceu com Reinaldo Loureiro e Fernando Peixoto quando
propuseram na época os villages e que nenhum empresário
aceitava. Na década de 70, perto de 80, eu tinha proposto
para alguns empresários reviver as vilas do início
do século, as vilas operárias, numa linguagem
mais contemporânea... Eles disseram que o baiano nunca
iria morar de meia parede.
Depois Reinaldo e Fernando fizeram experiências com aqueles
vilarejos em Itapuã, muito interessantes. Daí
para frente o que houve? Terrenos que caberiam 5 unidades, passaram
a colocar 7 ou 8, o que acarreta uma baixa qualidade. Muito
descaso. Alguém vem, lança uma coisa boa, aí
vem os aventureiros destruindo. Hoje em dia, você pode
ver que villages, apart hotéis são todos com baixa
qualidade e ninguém quer saber! Porque os exemplos foram
deturpados com um mau uso da arquitetura, com uma péssima
interação dos espaços, esteticamente nem
é bom comentar.
Ana Fernandes - Outra questão, quantos escritórios
estão hoje neste mercado?
Neilton Dórea - Hoje, no mercado imobiliário
são mais ou menos 6 escritórios fortes no segmento.
Ana Fernandes - O que desenvolvem? O projeto básico?
Neilton Dórea - Quem especifica nunca é
o arquiteto. Por exemplo, tem empresa de construção
que contrata só a planta baixa e a fachada achando que
isso é Arquitetura! Outro exemplo, essas construtoras
que atendem a classe média alta, todo o projeto de prefeitura
tem um arquiteto, a partir da aprovação, o arquiteto
perde o domínio do projeto.
Ana Fernandes - Mas isso é especificado por arquitetos
da própria empresa? Quem faz essa especificação?
O técnico?
Neilton Dórea - O dono, o corretor ou o comprador.
O que acontece é que você perde todo o domínio
do projeto, ou seja, perde a autoria.
Ana Fernandes - Vamos falar um pouquinho das perspectivas.
Para onde o mercado de arquitetura e urbanismo está apontando,
aqui na Bahia?
Neilton Dórea - Eu acho que o mercado na Bahia
está muito restrito. O mercado, hoje, eu acredito que
absorve 80% dos arquitetos é de Interiores e, mesmo assim,
um mercado de Interiores tendencioso, para usar a palavra "tendência".
O que é o produto de Interiores na Bahia, é uma
forma espacial com especificações dentro de uma
ótica que a classe dominante acha que seria o modo ideal
de morar, sempre o espelho alienígena.
Ana Fernandes - E as ONGs? Hoje temos várias que
trabalham com população de baixa renda e que começam
a propor projetos... Você tem notícia disso? Você
vê isso como possibilidade?
Neilton Dórea - Acho uma coisa muito boa, mas
em números é tão pouco expressivo que não
vejo como uma possibilidade para o mercado atual. Além
do mais esses trabalhos com ONGs, ao mesmo tempo em que eu diria
que poderia ser um mercado para o arquiteto, por enquanto é
caridade. A ONG, apesar de algumas terem dinheiro, quando procura
um profissional quer que ele também seja um participante
da ONG, como se fosse um doador. Isso não gera mercado!
Acho que se fosse o caso de existir como mercado, se existisse
profissionalismo em todos os sentidos, que a ONG tivesse uma
administração que com os recursos contratasse
pessoas competentes em Arquitetura, em Direito, ou em Ecologia
tendo vínculo profissional. Na realidade, as ONGs que
eu tenho contato não pensam desse modo. Todas as vezes
que fui convidado é como se eu tivesse fazendo caridade!
Ana Fernandes - Em termos de setores vinculados a turismo,
setores vinculados à indústria automobilística...
Você consegue perceber possibilidades nesse?
Neilton Dórea - Perceber eu consigo. Uma das
coisas que a gente tem que ver é que o próprio
pessoal que vai contratar sempre tem uma visão que nós,
aqui na Bahia, não temos a competência para exercer
isso. Eu não sei quem trabalhou para a Ford aqui na Bahia.
O projeto veio pronto de São Paulo. No Metrô estou
corrigindo erros de projeto... Estruturas indefinidas porque
não se sabe como vai ficar em pé!?!!. Estou corrigindo...
eu fui contratado para fazer o executivo, não para pensar
o Projeto. Projetos executivos são só os detalhes
e compatibilidade como os Projetos complementares..
A geração de hoje está direcionada para
a prática profissional no sentido da contratação
com o foco do contratante. Ainda assim sem a plenitude de domínio
do projeto, sem ser capaz de gerenciar totalmente o que vai
fazer.
Hoje em dia, o arquiteto está perdendo o domínio
da discussão da arquitetura. Você não discute
conceito, não vai discutir idéia, vai ouvir o
que ele quer e desenhar o que ele quer. Eu estava conversando
com um arquiteto, nesses coquetéis da vida, e ele está
fazendo um monte de Interiores de hotéis na Bahia, virou
"especialista" em hotel. Quando ele me falou dos valores
que estão pagando a ele, é um décimo do
que é merecido!!!
Vendo "meu peixe" tanto conceitualmente como empresarialmente.
Os contratos que tenho com o governo foram convites... Se não
fosse assim, em licitações eu perderia todas!
A licitação de um elevador, perto da ONG de Gilberto
Gil, primeiramente me chamaram para fazer esse projeto, depois
partiram para uma licitação, organizada pela CONDER.
O valor que ganhou, conseguiu com um quinto do que eu dei de
preço! E pela qualidade do que foi apresentado, ainda
pagaram caro!
Nós Arquitetos, não temos uma visão de
unidade, nem na escola, nem no IAB. De modo geral ficamos naquela
separação da formação e do exercício
profissional... entretanto, para a gente chegar a um padrão
de qualidade, para conseguir resgatar a integridade, temos que
brigar por um produto de maior qualidade, com melhor acabamento,
que o detalhamento seja muito mais técnico... Licitação
como é feito no Brasil, de modo geral, não é
feito lá fora. Lá fora, licitação
é a partir do preço conhecido, quem tiver 10%
acima ou abaixo contínua, os outros são desclassificados.
Em Camaçari houve uma licitação com o preço
inicial de R$200.000,00 e o que ganhou foi com R$40.000,00.
As outras construtoras se revoltaram!!! Eu não posso
comprar um BMW pelo preço de Fusca! É o famoso
" kapa". Sempre o menor preço, nunca a competencia
e a qualidade do profissional.
Ana Fernandes - Fale-me de sua experiência na ADEA
(Associação de dirigentes de escritórios
de Arquitetura).
Neilton Dórea - A ADEA foi uma experiência
muito importante. Não foi bem como eu queria. Minha idéia
sempre foi que houvesse uma união entre os arquitetos
para discutir todos os procedimentos da profissão e que
houvesse, claro, o respeito ético, um direcionamento
de atitude projetual muito mais coerente, em tecnologia, em
cultura, em tudo! No IAB sempre briguei por isso, eu levei essa
luta para o IAB. O IAB durante um período não
absorveu. Mas durante um período o IAB absorvia todas
as coisas, o que eu não acho errado, foi na época
muito difícil da Ditadura, o IAB foi aberto, era a "trincheira"
para todas minorias, menos para os arquitetos. Todas as tendências
políticas estavam lá, mas o IAB esqueceu completamente
dos arquitetos. Eu tentei levar e não deu certo. Lourenço
Valadares me chamou, na época, para fazer uma associação,
ainda tentei levar para o IAB, e lá Salete, que era a
presidente do IAB, me disse que o estatuto do IAB não
absorvia. O IAB é uma associação de pessoas
físicas e não pode ter jurídica! Tentei
conseguir uma brecha para realizar, mas não deu! Isso
foi mais ou menos em 85, 87.
Quando eu assumi a ADEA, ela estava num processo de degradação
total. No início era uma entidade forte, tinha arquitetos,
escritórios, patrocinadores. Estruturalmente ela foi
muito bem feita. A ADEA tinha quarenta e poucos associados e
só, oito pagantes. Nas reuniões não aparecia
mais ninguém da Diretoria. Na primeira gestão
tentei, tentei... Na segunda gestão, (eu fui reeleito),
vi que era impossível, ai acabou a ADEA. Tanto que fiz
uma carta renúncia, que diz : "não acreditava
em uma entidade que não tinha ideal, não tendo
nem o mínimo de apoio dos associados que seria a contribuição
financeira, então não haveria sentido em continuar
existindo". Assim acabou a ADEA... |
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NEILTON
DÓREA
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